Filme que todo fotografo deve assistir: Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles
- Sala de Fotografia
- 5 de nov.
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Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, sob o ponto de vista da fotografia cinematográfica e de sua importância histórica, estética e simbólica.
O texto traz contribuições de críticos como André Bazin, Pauline Kael, Roger Ebert e Peter Bogdanovich, além de estabelecer paralelos entre o filme e outras produções que exploram a visualidade como forma de pensamento.
Em Cidadão Kane, a fotografia não apenas acompanha a narrativa, mas a constrói. O diretor de fotografia Gregg Tolandutilizou a profundidade de campo (deep focus), os ângulos baixos e o uso expressivo do claro-escuro como recursos de linguagem, criando um novo modo de ver e compreender o cinema.
Como destacou André Bazin (1972), “a profundidade de campo em Kane não é um mero artifício técnico, mas uma nova forma de realismo; ela permite ao espectador escolher onde olhar e, assim, participar da construção do sentido”. Essa liberdade perceptiva transforma o espectador em coautor da narrativa, rompendo com o modelo clássico de montagem e conduzindo o olhar a uma experiência ativa e interpretativa.
A iluminação contrastante e a composição de planos revelam o poder e a solidão de Kane. Os enquadramentos que o colocam de baixo para cima sugerem grandeza e domínio; contudo, nas cenas finais, o mesmo recurso acentua a sua vulnerabilidade. Como escreveu Pauline Kael (1971): “Welles filmou a tragédia de um homem que queria possuir o mundo, e Toland a fotografou como se o mundo o estivesse engolindo.”
O filme se constrói a partir de múltiplas perspectivas, unindo fragmentos de lembranças para reconstituir a figura de Charles Foster Kane. Essa estrutura mosaica, em que cada personagem oferece um ponto de vista parcial, antecipa o cinema moderno e suas narrativas não lineares.
Para Bazin (1971), essa estrutura “não busca a verdade objetiva dos fatos, mas a verdade das percepções humanas”. Já Peter Bogdanovich (1998) observa que Kane “inaugurou o cinema do ponto de vista, o filme em que a forma é a própria investigação”.
A palavra final do filme, Rosebud, simboliza a infância perdida, a origem de todas as ausências. A imagem do trenó queimando é também uma metáfora da memória: o que resta de uma vida reduz-se ao instante que o olhar consegue capturar.
Desde seu lançamento, Cidadão Kane tem sido descrito como o filme que mudou o modo de ver o cinema. O crítico Roger Ebert (1998) afirmou: “Cada vez que o revemos, descobrimos algo novo não porque ele muda, mas porque nós mudamos e passamos a enxergar o que antes não víamos.”
Para André Bazin (1972), o filme representa “a vitória do realismo sobre a manipulação; uma revolução silenciosa onde o olhar do espectador é finalmente respeitado.” Já Kael (1971), em seu ensaio Raising Kane, sublinha o diálogo entre a genialidade de Welles e a contribuição decisiva de Toland: “Foi a colaboração entre um jovem visionário e um fotógrafo maduro que deu ao cinema sua primeira grande modernidade.”
A herança estética de Cidadão Kane pode ser percebida em várias produções posteriores que exploram a visualidade como pensamento narrativo:
Filme | Diretor | Relação estética e temática |
O Gabinete do Dr. Caligari(1920) | Robert Wiene | Uso expressionista da luz e da distorção como forma de subjetividade. |
A Marca da Maldade (1958) | Orson Welles | Continuidade do uso do plano-sequência e da tensão entre moral e poder. |
O Poderoso Chefão (1972) | Francis Ford Coppola | Luz e enquadramento como construções de autoridade e decadência. |
There Will Be Blood (2007) | Paul Thomas Anderson | Retrato da ambição e da ruína moral, ecoando a solidão monumental de Kane. |
Como observa David Bordwell (2017), “a gramática visual de Kane tornou-se o modelo invisível do cinema moderno, o modo como se pensa a imagem como inteligência”.
A fotografia em Cidadão Kane não é mero artifício visual: ela é estrutura de pensamento. Toland e Welles construíram um modo de ver que revela que “a imagem não ilustra o real, ela o interroga”, como nos diz Didi-Huberman, 2010. Cada plano é uma hipótese sobre a verdade; cada foco, uma forma de pensar o olhar.
Assim, compreender Cidadão Kane é compreender que ver é interpretar, uma ideia que ressoa na história do cinema e nas reflexões sobre a própria percepção. O filme permanece, ainda hoje, uma escola de olhar: um exercício de crítica da visão e do poder.
Ao tentar entender a fotografia no cinema, Cidadão Kane é um ponto de partida incontornável. A obra redefine o estatuto da imagem e do olhar no século XX, transformando o ato de filmar em um ato de pensamento. Welles e Toland ensinam que a imagem não é neutra: ela é criação de sentido, gesto e memória.
Como diria Bazin (1972), “Cidadão Kane é o filme que fez do espectador um intérprete e do cinema uma arte de pensar com os olhos.”
Referências (ABNT)
BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Perspectiva, 1972.
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: An Introduction. 11. ed. New York: McGraw-Hill, 2017.
BOGDANOVICH, Peter. This is Orson Welles. New York: HarperCollins, 1998.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
EBERT, Roger. The Great Movies. New York: Broadway Books, 1998.
KAEL, Pauline. Raising Kane. The New Yorker, 20 fev. 1971.
WELLES, Orson (Dir.). Citizen Kane. RKO Pictures, 1941. Filme.














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